Textos
janela
|
maria vai
|
um cão sem destino
trespassa o chão migalhas de gente sobrando ao mal talhadas da pedra em ponto cruz matando morrendo cantando ao rio é manso o vento beijando o vale é espera sem tempo colher o sol posto |
não farta não mói
a luz que amadurece não parte não dói a brisa que segreda apodrecer perto de ti resguardo de terra só meu desviar do alcatrão buscar-te pela noite dos cães que ecoam repetidos |
|
nuvens negras
de água cheias de água pé luxo sem caras feias trapos cacos modas lixo certas moldes fartas saco e vão de ir teias fatos sapos midas sempre acertas saldos mar e um cão só tens a ti par de ases mão de sonho |
feias trapos cacos modas lixo certas moldes fartas saco e vão de ir teias fatos sapos midas sempre acertas saldos mar e um cão só tens a ti sou tão justa e sensata eu sou tu mica feldspato |
Editorial (in GiraZine n.º1) |
Editorial (in GiraZine n.º2)
|
Duas horas da manhã, quase a bater as quatro. Na parte antiga da cidade onde se acharam, o ar frio desregulava as vontades. O mais alto pensava grave “bebo um copo com o Albino e vou daqui a nada para casa, que estou mesmo muito cansado”. Era um dia especial, de festa sazonal. Ao que considerava o outro “neste dia tão especial, vou beber um copo e depois outro e logo se vê”. Trocaram algumas palavras propícias a um encontro de amizade masculina num dia tão especial como aquele e entraram no local mais ajustado à prática urgente dos seus intentos mais visíveis, sendo que os invisíveis, sublimes se revelariam. Beniro disse “já não bastava ser o dia que é e ainda por cima é o teu aniversário, parabéns irmão Albino!”. Ao balcão pediram um segundo whisky “estalajadeiro, dois whiskies mais por favor, agora de uma marca menos branca sivouplé”. “Suave?”, indagou o balconista. Após o quarto whisky aspirado não contando com a oferta da casa, Albino e Beniro dançavam entre as damas como se as solas dos sapatos não se colassem a cada instante ao álcool derramado na pista e deslizavam com movimentos insólitos ao som das contrastantes selecções do DJ Aimée, ora thrash-metal noventas, ora rock sessentas. Findo o prazo de validade rumaram a novos portos, em busca de prolongamento. “Táxi!”. Não mais de quinhentos metros depois faziam-se entrar no bar Nova Báscula, um bar de motoristas de camião. Aqui se sentiram ainda mais em casa, as damas disponíveis eram vistosas e flamejantes ao olhar, os motoristas simpáticos e afáveis. Deixaram com dois motoristas assinado um contrato de distribuição do seu produto, descrição, peso, fabricante e origem a definir, uma proposta irrecusável. Escorreram pela porta do bar perto das oito da manhã, o nevoeiro e uma estranha lua canis lupus tornavam a existência uma coisa amena e muito incerta também. Beniro morava perto, foi de cama. Albino morava longe, chegou a casa liquefeito, pelo caminho os sinais de trânsito pareceram-lhe digitais aparições de néon. Dormiu perto de uma hora. Acordou-o a sogra chorosa, ranhosa, gritante “acorda Albino que morreu o teu velho tio Bartolo, temos que ir ao velório já!”. Este levantou-se suavemente e vestiu-se para o velório. Na capela, em busca de ar para os pulmões fumados da noite, vinha regularmente apanhar uma fresca fora portas, ao que era interpelado pelos amigos e familiares que lhe sussurravam “os meus sentimentos Albino, os meus pêsames... e já agora parabéns, fazes anos não é?!”. O velório aguentou-se todo o dia...
A presente história serve como meta-editorial para a Girazine número um: as histórias da vida acontecem inesperadamente, algumas doridas, outras de felicidade extrema, outras inclassificáveis, outras não têm nada a ver com nada, ficam as façanhas e as patranhas. Esta zine: um editorial que não é, conteúdos entre a capa e a contracapa, equipa com garras, trabalhos dos nossos colaboradores exprimidos com sumo. Não há tempo eu sei, é preciso pensar no futuro, trabalhar para pagar a prestação e as taxas do audiovisual, ter experiências de vida enriquecedoras e estar a par das nacionais de amanhã. Insistimos. Abra e leia devagar e depressa ao mesmo tempo. E por fim releia três dias depois, como se fossem torradas de pão recesso. Bom apetite! |
Por vezes, inesperadamente e sem aviso, diante do aluno voraz em atacar com a guitarra algum prelúdio de Bach, aciono o pedal de distorção e aproximo a guitarra elétrica do altifalante. O resultado é um grito infernal, como o miar desalmado do gato pisado na cauda pelo primo gordo. Pergunta o aluno de boca aberta o que é tal chiadeira, ao que respondo ser o fenómeno do feedback. E como devoto das ciências explico apaixonadamente o ciclo da alimentação sonora contínua e infinita dos captadores da guitarra pela emissão do altifalante, após o que faço o aluno ouvir e ver o grupo de heavy-metal Manowar e agora sim sem dúvida, o Bach cai como ginjas.
O ciclo da água também é feedback. A água evapora, sobe aos céus, precipita-se e, gota a gota de novo volta à terra, aos rios e mares, ao bebedouro do cão negligenciado. Sendo assim, gostamos de encarar este corpo aquático Girazine como parte do ciclo que nos precipita para o grande oceano da cultura. E antes de mais, cultura daquela do Homo das cavernas, que desejoso de se exprimir, publica nas pedras do refúgio a procriação do eu e o verso e anverso da realidade vivida e experimentada, digerida, a tinturas de raízes e sangue de caçadas. Azar, que a coisa dos direitos de autor não seja umas centenas de anos mais prolongada, já vi algumas pinturas rupestres que ia jurar serem de algum antepassado direto meu. Gota a gota, cada item deste número - as fotos de Rui Mendes, os artigos acerca da Cooperativa Cultural Mini-Stereo e o insólito projeto Musiquim, o conto O Mendigo dos Cigarros, a B.D. de André Mota, a entrevista ao escritor Richard Zimler, o poema visual do coletivo Aranhiças e Elefantes, o ensaio sobre cinema e psicologia de Lígia Parodi, a continuação do texto Sr. Pessoa, de Rafael Ferreira - constitui uma partícula importante deste todo cultural a que temos a honra e necessidade interna de pertencer e co-depender. |